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Uma criaturinha interessante

Um encontro na beira do rio

Era um sábado de manhã e eu tava como de costume indo pra um cantinho sossegado pra descansar e não fazer nada, dessa vez uma clareirinha na beira do rio. Eu escuto de longe algo como um resmungo. Parecia alguém ranzinza e irritado falando na velocidade 2x numa língua que eu não conseguia entender, de vez em quando parando como que pra suspirar, fazendo um chiado que parecia o som de um celular antigo vibrando numa mesa.

Identifiquei que o som tava vindo do meio do rio. Vinha de uma pequena pequena criatura, do tamanho de uma banana nanica. Flutuando no rio em cima de um pedaço de madeira, como se fosse uma canoa. Dando a direção com um galho, como se fosse um remo. À distância, a forma lembrava a de um velho, com barba e cabelos brancos e compridos. Observei um pouco, tentando entender. Quando eu vi que ele seguia o fluxo do rio e que eu ia perder a chance de entender que porra era aquela: chamei, assobiei e acenei. Se ele não parasse eu ia nadando, mas tava com medo de assustar e afugentar o bichinho.

O resmungo cessou. Depois de alguns segundos, começou a remar em direção à margem do rio onde eu tava. Eu vibrava por dentro enquanto observava ansiosamente o bichinho se aproximar. A forma e os detalhes se revelando a medida em que chegava: realmente tinha a forma de um velhinho, com barba e cabelos brancos. Mas de perto a pele lisa e os olhos brilhantes e atentos lembravam os de uma criança. O tronco, os braços e o rosto tinham uma cor verde claro, e as pernas eram de um roxo vivo, tipo um jambolão que tá quase maduro. Nunca tinha visto nada assim e não achei que um bichinho desses existisse. Eu fiquei absolutamente em choque. Mas também não tanto. Acho que eu tô me acostumando a enlouquecer de vez em quando.

Chegou na margem, pulou do pedaço de madeira pra areia úmida e me olhou nos olhos longamente. Abaixou a cabeça como num cumprimento, que eu retribui. Em seguida começou a conversar comigo com aquela voz fina que eu ouvi resmungando antes. Começou agradecendo que nossa conversa começou sem ninguém tentar correr ou tentar matar. Eu disse que matar e correr são coisas que eu não costumo fazer muito. Ele disse que tinha história pra contar, eu disse que tinha tempo pra ouvir, então começou a contar a história dele.

A vida dele

Vivia numa casinha feita no oco de uma árvore, num capão de mato em algum lugar frio da América do Sul, ele não quis detalhar exatamente. Passava a maior parte dos dias observando a vida ao redor da sua casa, às vezes saindo pra colher frutas ou caçar algum inseto ou passarinho pequeno. Haviam poucos da sua espécie no mundo, algumas centenas espalhados em todos os cantos: florestas, campos, desertos, geleiras, cidades. Eram solitários mas se reuniam todos a cada passagem de Júpiter por Aldebaran, pra compartilhar histórias em algum lugar escolhido e escondido.

Ele, especificamente, gostava de observar os humanos nos meses que precediam esses encontros. Sempre rendia histórias pra contar. E sentia que essas histórias jupiterinas viravam pecinhas numa história maior das mudanças da humanidade ao longo dos séculos. E como mudavam. Sempre mudam. Os hábitos, a estética, as ideias. Ele tava no fim de uma dessas jornadas, agora indo de encontro aos outros da sua espécie, e começou a me contar o que aconteceu desde que ele saiu de casa até agora.

Ele sempre vai até o maior grupo de humanos próximo da casa dele. Nos últimos 15 ciclos tem sido uma cidade que aos poucos foi crescendo, e hoje tem mais ou menos uns 100 mil habitantes. Chegou um pouco antes do raiar do dia na cidade e foi até uma praça grande que havia no centro. Subiu numa árvore e encontrou um cantinho confortável entre alguns galhos maiores pra esperar o sol e os humanos.

Tudo parecia como da última vez. Esses ciclos de doze anos eram um bom tempo pra perceber gradualmente as mudanças na sociedade humana. Sentia que mudava pouca coisa de uma visita para outra, mas quando comparava com duas ou três visitas anteriores, as mudanças eram mais nítidas. As cores, as roupas, as formas dos prédios que estavam sendo construídos. O formato e o barulho dos veículos.

Como fazia sempre, ele escolheu um humano para seguir e aprofundar a observação dos comportamentos individuais. Era uma pessoa de mais ou menos 1.65, com a pele pálida e cabelos curtos, lisos e escuros. Carregava uma mochila grande e quadrada. Ela estava distraída mexendo no telefone ao lado de várias bicicletas estacionadas em fila e então ele entrou sorrateiramente num buraco que havia na lateral da mochila, entre o plástico vermelho externo e o plástico prateado interno.

A vida de um humano

A pessoa finalmente montou na bicicleta e saiu pedalando pela cidade, e ele a acompanhou na mochila o dia todo. Cada vez que ela fazia uma parada, ele espiava para observar o comportamento dela e dos outros humanos nos locais. Percebeu que ela pegava e deixava pacotes. Pelo cheiro deduziu que estava entregando comida. Notou que a pessoa mexia incessantemente no telefone. A cada parada, enquanto pedalava, o tempo todo. Todas as outras pessoas na rua também pareciam mexer frequentemente nos aparelhos, mas não tão constantemente quanto a pessoa na bicicleta.

O dia já estava escurecendo e a pessoa finalmente retornou à praça da qual partiram de manhã cedo, devolvendo a bicicleta ao mesmo lugar. Caminhou uns 10 minutos até chegar em casa, ainda carregando nosso interlocutor na mochila vermelha. Subiu as escadas de um pequeno prédio de apartamentos antigo. Tinha um cheiro gostoso que lembrava o da sua casa na floresta: madeira velha e mofo. Girou a chave na porta e entrou no apartamento. Num único movimento jogou a mochila vermelha num canto, se lançou sobre o sofá e seu gato branco pulou no seu colo. Assim ficaram por mais ou menos uma hora, com o humano mexendo no seu telefone esse tempo todo. Ele observava tudo espiando pelo buraco no tecido da mochila.

Após isso, a pessoa foi até a cozinha. Era um apartamento pequeno. Escutou a pessoa ligar o fogão e desligar depois de cerca de 10 minutos. Voltou da cozinha segurando um prato de macarrão nas mãos, que comeu sentada no sofá, assistindo a vídeos no seu aparelho. Depois de comer levou o prato na cozinha e se dirigiu ao banheiro, ainda olhando o aparelho. Ele saiu rapidamente da mochila e a seguiu para dentro do banheiro, se escondendo atrás do vaso sanitário. Ela deixou uma música tocando no aparelho e o posicionou em cima da esquadria de alumínio do box do chuveiro. Ligou o chuveiro e começou a tirar a roupa.

Eu interrompi a história que o bichinho contava. Expliquei pra ele que não era legal invadir a privacidade de alguém assim e espiar a pessoa dentro da própria casa sem ela sequer saber, inclusive em momentos íntimos como quando tomando banho. Ele disse que não via problema nisso, só tava observando o comportamento de um indivíduo de uma outra espécie. Eu expliquei pra ele que isso não era legal a partir do ponto de vista ético humano. Ele discordou. Me contou que na região onde morava de vez em quando vinham humanos com binóculos e roupas camufladas e ficavam observando os passarinhos. E ainda ficavam entusiasmados quando flagravam algum ritual de acasalamento. Disse que não conseguia imaginar momento mais íntimo que esse e os humanos não pareciam nem um pouco preocupados em estarem sendo invasivos. Expliquei pra ele que nesse caso era diferente. Estavam estudando outra espécie mais simples, que não tem esse conceito de intimidade. Ele me indagou como eu sabia que eles não tinham esse conceito de intimidade? Realmente eu não tinha como saber. Além disso ele me disse que não era o único observando aquela cena, tinham vários humanos observando também de forma indireta. Então ele não via como aquilo poderia ser errado e ao mesmo tempo corriqueiro. Me surpreendi e perguntei pra ele que humanos estavam observando aquilo. Ele riu como se a minha pergunta fosse tão óbvia que só podia ser sarcasmo e seguiu contando a história.

A pessoa tomou banho, se vestiu, escovou os dentes, apagou as luzes da casa e deitou-se na cama. Ele a seguiu, escondendo-se atrás de uns livros numa prateleira. A única luz era a do aparelho iluminando o rosto da pessoa. Ela ficou assim por mais ou menos uma hora, até que finalmente deixou o aparelho de lado e adormeceu. Ele aproveitou o momento para pegar o aparelho e investigar, para entender o porquê da fixação dos humanos nesses aparelhos. Assim que ele desceu da prateleira pro chão o gato, que também dormia na cama, saltou no chão atrás dele. Rapidamente ele correu para dentro uma fresta que havia entre a mesinha de cabeceira e a cama, que o gato não conseguia alcançar. O gato tentava alcançar ele com a pata através da fresta. Passado o susto inicial ele se acalmou e começou a falar mansinho com o gato, que por alguns instantes parava e logo continuava a tentar alcançá-lo. Ficaram nesse jogo de estranhamento e aproximação por mais ou menos 30 minutos, até que o gato finalmente cedeu e o deixou se aproximar e fazer carinho na parte de baixo do seu queixo. Ficou acariciando e conversando com o gato por quase uma hora antes de retomar a sua missão.

O aparelho

Assim que conquistou um pouco da amizade do gato e sentiu confiança de que não o devoraria mais, subiu na cama e pegou o celular. Desceu com ele até o chão e tentou utiliza-lo em vão, já que havia uma senha numérica que o impedia de acessar. Decidiu esperar até o dia seguinte para observar a pessoa inserindo a senha. Voltou para a sala em busca de um lugar confortável pra chamar de casa dentro daquela casa. Entrou num buraco do sofá que havia visto mais cedo e ficou feliz ao encontrar um espaço razoavelmente amplo ali dentro, confortável no meio da espuma do sofá. Afofou um cantinho e adormeceu.

Acordou num susto, no meio da noite a espuma da sua casinha começou a se movimentar. Era o gato. Nosso interlocutor se enfiou num buraco da espuma, com medo de que o gato estivesse caçando ele, mas logo viu que o gato se ajeitou naquele espaço pra descansar. Reparou nas marcas de unha na espuma e se deu conta de que a casa não era dele. Retornou a interagir e acariciar o gato, até que por fim adormeceu ao lado dele.

No outro dia, assim que escutou movimento do lado de fora, saiu e se escondeu numa samambaia que estava pendurada no teto. Ficou acompanhando a pessoa na sua rotina matinal, atento até conseguir observar a digitação da senha no aparelho. 1998. Aproveitou para seguir acompanhando os movimentos seguintes na tela, e observou o ícone preto e branco que ela selecionou assim que inseriu 1998. Depois de tomar o café da manhã assistindo vídeos, a pessoa colocou o aparelho no bolso, os pratos na pia, a mochila nas costas e saiu pela porta. O dia correu sem grandes descobertas. Investigou a casa toda mas não descobriu nada que lhe chamasse muito a atenção e passou o resto do tempo brincando com o gato.

Quando a pessoa retornou à noite repetiu exatamente os mesmos passos do dia anterior: mochila no chão, sofá, celular, cozinha, macarrão, banho e cama. Ele observava atentamente o rosto da pessoa iluminado pelo aparelho, por detrás dos livros na estante aguardando sua oportunidade. Por fim ela deixou de lado o aparelho e adormeceu. Ele pegou o celular e o levou para dentro do buraco no sofá, sendo seguido pelo gato que deitou-se ali dentro. Grudou um pedacinho de sujeira do sofá na frente da câmera do aparelho e o posicionou de pé contra a espuma. Repetiu exatamente os mesmos movimentos do humano: 1998, ícone preto e branco.

Imediatamente um vídeo começou a ser reproduzido no aparelho. Era um menino dançando em cima de uma laje com uma vista bonita. Assim que acabou esse vídeo começou outro. E outro, e outro. Uma boa parte eram parecidos com o primeiro, algum humano dançando. Mas havia todo o tipo de coisa. Humanos ensinando coisas. Falando sobre outros humanos. Uma infinidade de temas diferentes, todos de forma curta e rápida. Alguns eram mais interessantes, outros menos. Logo começou a repetir o que observou o humano fazendo naquele dia de manhã, arrastando pra cima para pular aqueles que não o interessavm tanto. Ele seguiu assim noite adentro.

Sentia como se o aparelho estivesse enviando vídeos cada vez mais rápidos. Sentiu o coração acelerando, a cabeça começando a doer. Os barulhos do lado de fora do sofá, ou do gato se mexendo, começaram a provocar pequenos sustos nele. Passou a sentir como se algo terrível fosse acontecer muito em breve. De vez em quando ao terminar um vídeo colocava a sua mãozinha repousada sobre a tela para pausar o próximo que já iniciava e olhava ao redor para garantir que estava tudo bem. Parecia estar. Mas continuava com essa sensação de que algo ruim ia acontecer. Aos poucos essa sensação cresceu e cresceu e cresceu dentro da sua cabeça, como se fosse um zumbido de um motor cresce a medida que aumenta a rotação, até se tonar ensurdecedor. Os pensamentos dentro da sua cabeça pareciam acompanhar esse zumbido, até se tornarem indistinguíveis uns dos outros. Até se tornarem o próprio zumbido.

De repente sentiu um pulso eletromagnético saindo do telefone, batendo forte no seu corpo e sendo registrado pelo aparelho. Caiu pra trás num susto. Os vídeos ainda tocando no aparelho iluminavam o interior do sofá. Os pensamentos ainda indistinguíveis uns dos outros se tornaram todos aterrorizados. Percebeu que com o registro daquele pulso pelo aparelho seria possível identificar sua forma, e perceber que não era um humano utilizando aquele aparelho. Com a respiração curta e ofegante, como se o coraçãozinho fosse parar, saiu correndo buraco afora, com medo de ser descoberto e perseguido pelos humanos. Temendo estragar séculos, milênios de atuação discreta da sua espécie e de tantas outras que só aparecem para os humanos quando querem. Correu por dias e noites e dias e noites e dias e noites sem parar, até que gradualmente a sua respiração foi acalmando um pouco e os pensamentos ainda acelerados começaram a ser discerníveis uns dos outros. Chegou à margem de um rio, pegou um pedaço de madeira e um galho. Subiu em cima do pedaço de madeira, como se fosse uma canoa. Dando a direção com o galho, como se fosse um remo.

Foi aí que ele me viu de longe sentado com as cachorras na beira do rio e decidiu não se esconder. Seria bom conversar com um humano agora sobre tudo aquilo. Então seguiu remando e resmungando e despejando no ar os pensamentos que doíam na sua cabeça, esperando que eu notasse e chamasse. Eu notei e chamei e assim que chegamos aqui. Ele me disse que flutuando pelo rio ficou refletindo sobre a jornada desse ciclo, que sem dúvida alguma foi a mais emocionante e aterrorizante de toda a sua vida. Ficou tentando entender o porquê dos humanos estarem ingerindo informação nessa velocidade colossal. E não só alguns humanos com algum objetivo ou algo assim. Todos estavam nesse ritmo. Será que estavam tentando desvendar algum segredo do universo através de força bruta? E por um instante ficou admirado com a capacidade humana de conseguir fazer isso sem enlouquecer, como aconteceu com ele. Dessa vez fui eu que não entendi se ele tava sendo sarcástico. Seguimos conversando por mais ou menos umas duas hora sobre isso tudo. Ele me agradeceu, acho que eu ajudei ele a entender alguma coisa, eu espero. Ele definitivamente ajudou a me confundir. Eu também agradeci. Ele seguiu seu rumo flutuando no tronco em direção ao seu encontro jupiterino. Eu peguei meu telefone, apaguei minhas contas e aplicativos do instagram, tiktok e facebook. Tô fazendo um site agora.