Farol de Santa Marta
o velho, a Kombi e a decisão de pegar a estrada
O velho e o pesadelo
Eu acordei e bati uma palminha pra tentar ativar o visor do relógio que eu comprei na AliExpress. Não funcionou, tentei mais umas três vezes até aparecer o horário. 04:47. Um pouco mais cedo do que eu planejava acordar pra ir surfar. Mas já não valia a pena tentar voltar a dormir. Fiquei tentando lembrar que horas eu tinha ido dormir no dia anterior pra calcular se eu tinha dormido o suficiente. Mas acordei com aquela sensação de não saber que dia é hoje, sabe? Vi que era terça-feira, levantei e segui meu dia. Tomei meu café da manhã e fui surfar. No mar, esperando a série entrar, começaram a surgir lembranças do dia anterior na minha cabeça. Na real eram lembranças de um sonho. Mas pareciam mesmo lembranças de ontem.
No meio da tarde eu ouvi uma batida na porta. noc noc. Ninguém batia na minha porta, ficava a uns 500 metros da porteira morro abaixo. Alguém teria de pular a porteira e caminhar até minha porta. Ninguém fazia isso. Alguém fez, e acho que por ser um sonho eu achei a coisa mais normal do mundo. Eu abri a porta e enxerguei um velho. Tinha um aspecto meio de Olavo de Carvalho. O cabelo curto e branco, a pele grossa e enrugada, os olhos pequenos atrás de um óculos de armação transparente. Um palmo mais baixo que eu, usando um terno, sem gravata. Eu perguntei o que ele queria e ele me disse que só queria observar algumas coisas, pediu pra entrar. Eu deixei ele entrar. Ele elogiou minha casa. Disse que era uma belo lugar pra passar a eternidade sozinho. Um calafrio correu minha espinha. Entrou no escritório, na sacada, no quarto. Perguntei se ele queria conhecer a cozinha. Ele me disse que já tinho visto tudo que precisava ver.
Quando foi sair pela porta, perguntou se podia me mostrar uma coisa. Eu disse que sim. Ele pisou duas vezes na pedra fria da soleira da porta, fazendo barulho com seu sapato de sola dura. noc noc. A terra na frente dele começou a se abrir até mais ou menos meio metro de profundidade. De dentro dessa trincheira que se abria, começou a queimar um fogo vermelho brilhante. Foi se espalhando para cima e para dentro da casa até envolver ela por completo, às vezes soltando uma ou outra labareda azul. Eu fiquei parado na soleira da porta, vendo tudo queimar. Eu senti o toque do fogo na minha pele. Não era nem frio nem quente. Era morno e asqueroso. Senti um embrulho no meu estômago. Depois eu não lembrava de mais nada. Ali sentado na prancha lembrando eu senti o embrulho no estômago de novo.
Decidindo e pegando a estrada
Aquela lembrança me fez pensar. Já fazia algum tempo que eu não vinha me sentindo exatamente em casa aonde eu tava. Foi esse o dia que a ideia de pegar a estrada subiu na minha mente. E agora lembrando eu sinto de novo o alívio que eu senti ao me dar conta de que eu podia fazer isso. Como é bom não ter uma vaca, né?🐄 Eu trampo remoto e conseguiria me manter na estrada, então isso tá resolvido. O principal desafio que eu via de viver viajando era o mesmo que eu via morando onde eu morava, conseguir criar vínculos. Mas eu já não tava tendo isso mesmo, então o que eu perco? E eu ganho o mundo todo. A decisão foi fácil no final das contas.
A primeira etapa foi a de idealização. Comecei a pensar mil cenários. Pesquisar preço de Motor Home. Caro pra porra. Não vai rolar. Uma Kombi Home não é tão cara, acho que rola. Mas será que vai ser bom morar numa? Vou curtir dirigir ela? Meu deus olha que coisa linda essa Kombi no Instagram. Como será que eu vou chamar minha Kombi? Ela tem que ter um nome né. ChatGPT me dê sugestões de nomes de veículos. Volta, péra. Vamo pensar um pouco. Talvez eu esteja me apressando. Acho que é melhor eu testar, né? Então foi o que eu fiz. Como eu costumo fazer. Testar. Aluguei uma Kombi por uma dessas plataformas online, que não vou citar o nome pra não fazer propaganda de graça.
Eu tava indo buscar a Kombi em Floripa, mas não tinha dinheiro trocado pro ônibus. Passei na barbearia do Ademir, fiz um pix de 10 conto pra ele e ele me deu uma nota. Eu tava em cima do laço pra pegar o bus. Ademir, como um bom barbeiro que é, começou a puxar um assunto, agora não me lembro exatamente do quê mas acho que tinha algo a ver com Deus. Tive de cortar o papo pra seguir meu rumo. O que é uma pena porque em tantos anos morando ali do lado, foi a primeira vez que falei com Ademir. Desculpa Ademir. Será que Ficar careca e raspar o cabelo em casa me ceifou a oportunidade de papos de barbearia? Pensando bem não né, eu sempre odiei "ir" cortar o cabelo. Quando eu era pequeno era o meu maior pesadelo. Uma vez de tanto que eu odiava eu fiquei com febre enquanto cortava o cabelo. Então sinto muito, Ademir.
Peguei o ônibus e encontrei com o moço da Kombi em Florianópolis. Papeamos e descobrimos que tínhamos um amigo em comum. Me esqueci o nome dele agora mas era músico e boa gente. Teve o sonho de viajar a América Latina naquela Kombi, mas a vida se meteu no meio do caminho. Deixei ele em casa dirigindo a Kombi, e parti pra minha casa pra buscar as cachorra. Me atrapalhei um tanto no começo no dirigindo a Kombi, admito. Mas depois que peguei as manha do câmbio comecei a me divertir. Quando eu acabei de carregar minhas coisas na Kombi já era fim de tarde, não ia dar tempo de dirigir muito de dia. Decidi dormir em Governador Celso Ramos. Fui pra Praia de Palmas, encontrei um cantinho e dormi por ali.
No outro dia acordei cedinho, fiz meu café da manhã e tomei ele vendo o sol nascer no mar. Depois fui surfar. Dois golfinhos deram um pulo enorme do meu lado. Foi bonito. Tava eu e mais um surfista na água. Ele começou a remar mais pro lado, dizendo: “vai que os bicho tão com fome e vem dar um bicada no meu pé.
Farol de Santa Marta
Então eu parti em direção ao Farol de Santa Marta, debaixo de muita chuva. Tinha passado no mercado antes de ir. No meio do caminho parei pra fazer um sanduíche ali dentro da Kombi. É confortável demais estar na estrada e numa casinha ao mesmo tempo. Fazia frio, ventava e chovia na hora em que chegamos. Era fora de temporada, então a cidade estava fazia. Precisei esperar um tempo até que o pessoal do camping chegasse pra abrir, então saí pra passear com as cachorras pelas dunas. Soltei elas e deixei elas correrem. As duas logo rodearam a parte de baixo de um pequeno barranco na areia coberto de capim, cheirando e cavando. Eu olhei mais de perto pra ver o que se tratava.
Algo por baixo da areia começou a se mover. Parecia muito nitidamente um olho se abrindo. A pálpebra superior se movendo pra cima e areia caindo de cima dela para o chão. Cheguei mais perto pra ve melhor. Era de fato um olho castanho mais ou menos do tamanho de um melão. Acho que eu devia ter me espantado mais, mas aquele olho tinha uma expressão tão serena e tranquila que era difícil despertar alguma preocupação. O olho olhava ao redor. Eu olhava ao redor com o olho, tentando entender. Em algum momento fixou o olhar em um ponto, olhando pra mim e de novo pro ponto, repetidamente como se tivesse tentando me apontar algo. Eu olhei na direção em que ele apontava. Enxerguei vários olhos pacificamente se mexendo nos barranquinhos da areia, aqui e ali. Aos poucos foi subindo na minha cabeça algumas memórias, e eu comecei a entender por quê aquela cena me parecia tão familiar. Não era a primeira vez que eu via aqueles olhos. Eles sempre estiveram lá. Eles tavam lá naquele verão que eu aprendi a andar de bicicleta, e tentei descer com a minha bicicleta de cima de uma duna. Só pra roda dianteira da bicicleta afundar quando eu cheguei embaixo, e o freio de metal coberto de tinta branca afundar em mim. Eles tavam lá, me olhando com essa paz, como que garantindo que ia ficar tudo bem.
Recebi a mensagem do camping dizendo que tinha chegado para abrir o portão. Cheguei no camping, troquei uma ideia com o dono do lugar sobre as condições do surf em cada uma das praias dali: vento sul é na Prainha vento norte é no Cardoso. Não muito mais que isso. Estacionei a Kombi perto da cozinha e dos banheiros. Foi uma semana de muita chuva e de pouco movimento no camping. Surfei todos os dias de manhã bem cedinho, como de costume. Antes de entrar no mar, sempre aproveitava pra ficar um tempo olhando de fora. Olhando o mar. Olhando os olhos. Os olhos me olhando. Os olhos olhando o mar. Lá pelo meio da semana o encaixe da minha quilha quebrou e o dono ali do camping me salvou e me emprestou uma pranchinha biquilha. Peguei altas com ela no Cardoso, foi o melhor dia de surf.
Meu foco principal nesses dias era decidir se eu queria viajar de Kombi ou não. E eu decidi que não, apesar de ter gostado de dirigir e de morar na Kombi. O principal ponto pra eu tomar essa decisão foi o cuidado com minhas cachorrinhas. Morando na Kombi, não tem onde deixar elas quando eu for sair. E eu saio todos os dias pra surfar. Deu pra deixar elas sozinhas na Kombi nessa semana porque chovia e fazia frio. Mas e quando eu for pro nordeste? Pensando um pouco eu poderia ter chegado nessa conclusão sem ter alugado uma Kombi por uma semana né? Mas acho que eu tinha de sentir na pele mesmo, além de que foi massa a experiência. Então decidi que ia viajar com o carro que tenho, alugando estadias ao longo do caminho. Provavelmente ficando mais tempo em cada lugar, pra conseguir baratear os custos com aluguel mensal. Agora era hora de voltar pra casa e planejar meu próximo destino.









